Por Márcia Piovezan — Especialista em Planejamento Patrimonial da Família
O Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI) proferiu, em 21 de março de 2022, uma decisão relevante no Recurso Administrativo nº 14022.116144/2022-57, alterando o entendimento até então consolidado quanto à exigência de alvará judicial ou escritura de partilha para arquivamento de alteração contratual decorrente do falecimento de sócio em sociedades limitadas. A decisão abre precedentes importantes para a aplicação prática da Lei da Liberdade Econômica e reforça o princípio da autonomia privada nas relações societárias.
⚖️ Enquadramento Legal
Tradicionalmente, a Instrução Normativa DREI nº 81/2020, em seu item 4.5, exige a apresentação de alvará judicial ou escritura pública de partilha para que as Juntas Comerciais procedam ao arquivamento da alteração contratual motivada por falecimento de sócio:
“4.5 – Quando se tratar de alteração contratual motivada pelo falecimento de sócio, é obrigatório anexar o alvará judicial ou escritura pública de partilha de bens específica para a prática do ato.”
No entanto, a decisão do DREI no referido recurso contrariou esse dispositivo, considerando válida a cláusula de alienação automática de quotas do sócio falecido aos remanescentes, desde que prevista expressamente no contrato social, com valores, critérios de apuração e forma de pagamento previamente definidos.
📚 Fundamentos da Decisão
A nova interpretação do DREI baseia-se em três pilares jurídicos fundamentais:
- Artigo 1.028, inciso I, do Código Civil/2002 Esse dispositivo estabelece que:
- “Falecendo sócio, liquidar-se-ão suas quotas, salvo: I – se o contrato dispuser diferentemente, ou se os sócios remanescentes optarem por dissolver a sociedade.”
Trata-se de autorização legal expressa para que os sócios, por meio do contrato social, estipulem regras próprias para o caso de falecimento, como a alienação automática das quotas ao(s) sócio(s) remanescente(s), evitando, assim, a entrada de herdeiros na sociedade.
- Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019): O artigo 3º, inciso IX, determina que o Estado deve respeitar os contratos e priorizar soluções extrajudiciais e negociadas. Isso reforça a força vinculante do contrato social pactuado entre os sócios em vida.
- Lei nº 8.934/1994: A Lei do Registro Público de Empresas Mercantis limita a atuação das Juntas Comerciais à verificação da legalidade formal do ato apresentado, vedando análise de mérito do conteúdo contratual, exceto nos casos de manifesta ilegalidade.
Assim, o DREI entendeu que a exigência de alvará ou partilha não se aplica quando a própria sociedade já tiver pactuado, em cláusula específica do contrato social, a forma de alienação das quotas em caso de falecimento de um dos sócios.
📌 Implicações Práticas
Essa decisão representa uma vitória importante para a advocacia contratual e para o planejamento patrimonial e sucessório, na medida em que:
- Preserva a continuidade empresarial sem necessidade de processo judicial;
- Evita a dissolução parcial da sociedade;
- Respeita a vontade dos sócios expressa previamente;
- Afasta herdeiros da condição de sócios, atribuindo-lhes apenas o direito ao recebimento do valor correspondente à quota;
- Garante maior segurança jurídica e previsibilidade às operações societárias.
🧠 Requisitos para Validade da Cláusula de Alienação Automática
Para que essa cláusula produza efeitos válidos, recomenda-se observar os seguintes requisitos técnicos:
- Previsão expressa no contrato social;
- Definição objetiva do critério de apuração de haveres;
- Estipulação de prazo e forma de pagamento;
- Garantia de que o sócio remanescente assumirá as quotas mediante contraprestação (onerosa);
- Arquivamento da cláusula na Junta Comercial antes do falecimento do sócio.
🧾 Conclusão
A decisão do DREI sinaliza um novo paradigma no direito societário brasileiro, valorizando a autonomia privada e a liberdade de contratar, e demonstra a evolução do entendimento administrativo em sintonia com os princípios da desjudicialização e eficiência.
Advogados, contadores e consultores devem estar atentos a essa mudança para orientar adequadamente seus clientes na estruturação de cláusulas contratuais eficazes, que permitam a sucessão empresarial sem entraves judiciais, sempre com a devida cautela jurídica e técnica.
📍 Autora: Márcia Piovezan – Advogada especialista em Planejamento Patrimonial da Família, membro do Time Holding Brasil, com atuação voltada à estruturação de holdings, sucessão familiar e proteção patrimonial.